(PORTUGUÊS) Mario Vargas Llosa

Mario Vargas Llosa, em “DIÁRIO DO IRAQUE” (2003)

O vencedor do Prêmio Nobel de Literatura reflete sobre sua conversa com Sergio Vieira de Mello e Carolina Larriera durante uma viagem com sua filha Morgana à cidade ocupada de Bagdá, Iraque, em junho de 2003.

 

COM AS BOTAS BEM COLOCADAS

Estamos tão acostumados a ler no jornal a notícia de ataques terroristas nos cinco continentes, suas vítimas deslizando diante de nossos olhos como meros números, abstrações gritantes que apenas mantem a nossa atenção por alguns segundos e desaparecem sem deixar rasto na memória. Até que, de repente, como eu fiz esta semana, com a notícia da explosão que fez voar o Canal Hotel, no subúrbio de Zeuna de Bagdá, onde funcionavam as Nações Unidas, os massacrados, mutilados e feridos, eles adquirem corpo, eles adquirem faces, vozes, nomes e sua sangrenta e bem conhecida humanidade nos confrontam com o horror, com a infinita abjeção do terrorismo.

Naquela noite eu tive pesadelos com a imagem de Sérgio Vieira de Mello, agonizante por cerca de quatro horas, preso nos escombros daquele escritório onde conversamos durante toda a manhã, durante toda a manhã, enquanto, com seu celular, ele dirigia a coluna de resgate que, entre as ruínas, a fumaça e as chamas tentavam alcançá-lo (quando chegou, já era tarde para salvá-lo). E eu sonhei também com o perfeito cavalheiro, militar modelo para a paz, o capitão espanhol Manuel Martin Oar, que tanto me ajudou o dia que eu estive em Bagdá, e que ele trabalhou arduamente para facilitar o trabalho de organizações humanitárias e de direitos humanos no Iraque, outra das vítimas das 1.500 toneladas de explosivos que os terroristas explodiram naquele prédio desmoronado onde 300 funcionários e staff de todo o mundo trabalhavam, coordenando a ajuda internacional e o retorno da soberania ao sofrido povo iraquiano

Todas as pessoas que conheci naquele escritório de Vieira de Mello eram magníficas, estavam lá por vocação e todos sabiam, começando com ele, que naquela missão iraquiana estava em jogo a vida a todo momento (se jugaban la vida a cada instante). Vários deles, como a argentina Carolina Larriera – poliglota e cordial, atenciosa, boa leitora- que sobreviveu, o acompanhou na gestão brilhante realizada em Timor-Leste e todos levaram com espírito esportivo e bom humor os tremendos sacrifícios que significa viver em uma cidade sem luz elétrica e sem beber água, com temperaturas infernais e presa do caos. Mas seu chefe de gabinete, a inteligente Nadia Younes, egípcia que conhecia os problemas do Oriente Médio no coração, não vai mais brincar ou jogar sua risada rouca, a menos que no outro mundo o humor ainda seja possível para humanos intactos e bravos que morrem como ela com suas botas colocadas.  Estou feliz, é claro, que o jovem Jonathan Prentice, assistente executivo Vieira de Mello, foi salvo, mas imagino a sua consternação e horror da matança e devastação que dizimou o escritório executivo do qual ele fazia parte.

Sérgio Vieira de Mello tinha tanto charme pessoal que, quem o tratou pela primeira vez, poderia confundi-lo com um desses diplomatas de salão, fachada pura e nada dentro, a quem Jorge Edwards certa vez chamou de “tigres de coquetel”.  Na verdade este cinquentão bem falado, de cabelos grisalhos e elegante, seduzindo os seus parceiros imediatamente com o seu equilíbrio e boas maneiras, era um homem excepcionalmente capaz e preparado -doutorado em filosofia na Sorbonne, que passou a maior parte de sua vida intensa cercada o horror das guerras civis e genocídios étnicos, massacres religiosos e fanatismo nacionalista, matanças sociais dos refugiados, imigrantes e minorias perseguidas, trabalhando tanto com tenacidade e astúcia e habilidade, para encontrar soluções para os problemas terríveis do nosso tempo, e se a solução global não era possível, pelo menos para curar e aliviar o sofrimento e as dificuldades dessas imensas massas de vítimas que deixam cada dia regada pelo planeta a intolerância, a estupidez e a cegueira de fanáticos, os proprietários das verdades únicas.

Uma meia dúzia de vezes eu estiva com ele, em diferentes instâncias de sua carreira, e, cada vez, ouvindo-o falar sobre a guerra civil no Sudão ou Moçambique, a desintegração do Líbano, os refugiados da Indochina, o êxodo Albanês , genocídios em Ruanda, a guerra e limpeza étnica na Bósnia Herzegovina, ou a agonizante reconstrução de Timor-Leste em sua marcha para a independência, fiquei impressionado com o seu conhecimento profundo da matéria, a sagacidade de sua análise, e, talvez , acima de tudo, de descobrir que o comércio de uma vida com as formas mais atrozes do sofrimento humano, a este funcionário não tinha endurecido o seu coração, que, sob o seu realismo cartesiano rigoroso e espírito pragmático de grande negociador, Sergio Vieira de Mello era um ser sensível e compassivo, e que às vezes evocando certas cenas e episódios dos quais tinha sido testemunha ocular, sua voz se quebrou.

“Você não está cansado de tantos horrores?”, perguntei. “Por que você concordou em vir a este merdier?” “Eu não encontrei bons argumentos para negar-me”, desculpou-se, o seu eterno sorriso de orelha a orelha. Ele levava algumas semanas em Bagdá, mas é claro, já tinha o arquivo iraquiano na ponta dos dedos e durante uma hora desintegrou em detalhe a complicada teia de tensões e conflitos entre xiitas e sunitas, curdos e árabes, exilados e, xeques tribais locais e líderes religiosos e do labirinto de organizações terroristas tinha começado seu trabalho de minar a impedir a reconstrução do Iraque. Eu disse que sabia de muita boa fonte de que tinha sido ele quem convenceu a Paul Bremer, o vice-rei, que o Comité de Governo iraquiano tivesse poderes executivos e não fosse apenas um órgão consultivo das forças de ocupação. “Ainda não o convenci completamente”, respondeu ele. “Mas ele fez algumas concessões e isso é importante. Porque enquanto os iraquianos não tenham a impressão de que são eles, e não os americanos, os que dirigem a democratização do país, esta não sairá adiante”. Ele não era otimista ou pessimista; Simplesmente, como não havia como voltar atrás, o importante era que a intervenção armada – boa ou ruim – servisse para melhorar as condições dos iraquianos. Para isso, era essencial reconstruir a relação entre as Nações Unidas e os Estados Unidos, tão danificada como resultado das discussões no Conselho de Segurança sobre a questão do Iraque. Ele tinha uma boa relação de trabalho com Paul Bremer e o enviado do presidente Bush o consultava frequentemente e ele costumava ouvir seus conselhos. Mas, para não ferir as suscetibilidades, ele me pediu para não dizer uma palavra sobre isso e de alguma forma destacar sua influência, uma promessa que cumpri.

La próxima hora falamos sobre o Brasil e Lula, América Latina, amigos comuns, do meu filho Gonzalo quem aprendeu muito ao seu lado nos dias trágicos de Sarajevo, dos tesouros guardados do Museu Arqueológico do Iraque, do opressivo calor Bagdá. “É terrível não ter tempo para ler”, reclamava ele. “Eu trouxe uma mala de livros pensando que aqui eu poderia recuperar o atraso nas leituras e a verdade é que trabalho quinze horas por dia ou mais.” Na verdade, ele ficou encantado com esta missão muito difícil e mergulhou nela com toda a energia e o insaciável entusiasmo com que o fizera antes em Kosovo, Ruanda, Bósnia, Camboja ou Timor Leste.

“Alguma vez temos que falar sobre literatura”, ele me disse, quando nos despedimos. Uma conversa definitivamente cancelada, amigo Sergio. O atentado terrorista que destruiu as instalações das Nações Unidas em Bagdá, matando mais de vinte pessoas e ferindo mais de cem – o mais grave dos quais a ONU foi vítima desde a sua criação- tem merecido, como esperado, leituras muito diferentes.

A mais tendenciosa ideologicamente, do meu ponto de vista, é aquela segundo o qual o ataque é uma demonstração do fracasso absoluto da intervenção militar no Iraque e da necessidade que as forças de ocupação retirem-se o mais rápido possível e devolvam a independência para o povo Iraquiano.

Este raciocínio aberrante pressupõe que o ataque foi realizado pela “resistência”, ou seja, pelos unânimes iraquianos patrióticos contra invasores estrangeiros e seu símbolo, a organização internacional que legalizou a Guerra do Golfo e o embargo. Não é assim.

O ataque foi perpetrado por uma das várias seitas e movimentos dispostos a trazer o Apocalipse para impedir que o Iraque pudesse se tornar, em um dia em breve, um país livre e moderno governado por leis democráticas e governos representativos,

uma perspectiva que em toda a justiça aterroriza e enlouquece aos gângsteres assassinos e torturadores do Mukhabarat e aos fedayeen de Saddam Hussein, aos comandos fundamentalistas da Al Qaeda e Ansar al Islam e as brigadas terroristas que os clérigos ultraconservadores do Irã enviam para o Iraque.

Todos eles, – alguns milhares de fanáticos armados, sim, com meios extraordinários de destruição- sabem que se o Iraque se torna uma democracia moderna, seus dias estão contados e assim ter desencadeado esta guerra sem quartel, não contra a ONU ou soldados da coalizão, mas contra o maltratado povo iraquiano. Deixar a terra livre seria condenar este povo a novas décadas de ignomínia e ditadura similares àquelas sofridas sob o Baath.

Na verdade, antes deste crime e daqueles que estão por vir – agora está claro que as organizações humanitárias e de serviço civil se tornaram alvos militares do terror – a resposta da comunidade dos países democráticos deveria ser a de multiplicar a ajuda e apoio a reconstrução e democratização do Iraque. Porque neste país uma batalha está sendo travada nestes dias cujo resultado transcende as fronteiras do Iraque e do Oriente Médio, e abrange o vasto domínio daquela civilização pela qual tem sacrificado suas vidas Sergio Vieira de Mello, o capitão Manuel Martín Oar, Nadia Younes e tantos heróis anônimos.